segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Uma aventura no Monte Branco - 2ª Parte



Courmayeur – Aqui, ao chegar é-nos de imediato entregue o saco, que transportamos para um grande pavilhão com mesas corridas. Era difícil encontrar lugar. Estava quase cheio. Aqui era servida comida quente. Sento-me à mesa, mas antes de ir a qualquer abastecimento mudo de roupa, sapatilhas(que bem me acentam). Alguns minutos depois acabo por encontrar o Guilherme e o Hugo Velez. O Hugo vai às massagens enquanto nós vamos tentando ingerir alguma comida, mas o apetite era pouco. Como o Hugo veio tão satisfeito convenceu-me a ir também, enquanto o Guilherme se pôs ao caminho. Pedi uma massagem que me levasse até Chamonix, e foi isso que a simpática massagista fez. E resultou.
Preparamos a carga e lá parti com o Hugo. Saída calma pelas ruas de Courmayeur,(o apoio dos italianos aos atletas é idêntico ao português – quase nulo), mas depressa entramos num percurso pedestre bem empinado. Vamos subir 800 m em cerca de 4km. O Hugo sobe mais devagar. A paisagem é fantástica. Paro, para tirar fotos e chego ao Refuge Bertone. Mais coca-cola, sopa de massa, água e cerca de 15mn de paragem. Agora, nos próximos 10 kms não havia grandes dificuldades. Era seguir por um carreiro, com vários cursos de água que desciam da montanha e sempre com a fabulosa paisagem que justificava o ir devagar - sempre acima dos 2000m. Poucos km depois apanho o Guilherme, que ia a caminhar. Continuo um pouco mais depressa até ao abastecimento Refugio Bonatti (alt. 2020). O Guilherme Chega pouco depois. Este local é propício ao descanso. A Paisagem “obriga-me” a uma paragem um pouco mais prolongada. Ainda me deitei um pouco num banco para dormir, mas o vento vindo da montanha era demasiado fresco. Mais uma foto com o Guilherme e vamos embora juntos para mais uma etapa. Esta terminava com uma descida acentuada até Armuva(1769m), para de seguida subir até ao ponto mais elevado do percurso. O Guilherme ‘refila’: porquê descer até lá abaixo, se temos de subir de imediato? E víamos os outros ali tão perto e ao mesmo nível.
Para atacar a subida ao ponto mais alto, em Armuva paramos mais um pouco(+-30min) para recuperar energias com a sopa do costume, uma sandes de chouriço, coca-cola qb, chocolate e água. Chega a hora de pegar a carga. A mochila parecia estar mais pesada. Logo na saída, a subida é íngreme. Em 2km vamos subir 300. Nalgumas partes, levamos quase o queixo aos joelhos. Os bastões funcionam em pleno nestes trilhos. Depois de muito serpentear serra acima, lá avistamos no cimo as tendas que indicavam o Grand Col Ferret. Sento-me um pouco para esperar pelo Guilherme, ingerir um gel e tirar mais uma foto, e lá vamos os dois atacar o ponto mais alto. Logo que chegamos ao cimo, corremos para o abrigo das tendas (não havia ordem para entrar nas tendas) para vestir o corta-vento. O vento era realmente frio.
Entramos na Suíça e a paisagem muda bastante. Vamos descer durante 10 km até La Fouly. Primeira parte com bom piso. Paragem logo depois de 500 m, porque o frio passou e tivemos de tirar o corta-vento. Temos uma vista ‘aérea’ maravilhosa das vaquinhas suíça lá bem no fundo do vale. Estava uma temperatura muito agradável e uns relvados mesmo a pedir uma sesta. Passamos por alguns no descanso. A tentação foi grande mas resisti com medo de não acordar a tempo de continuar. Adiantei-me em relação ao Guilherme. Com o vestir e despir do corta-vento, não reparei que o GPS estava a pedir carga e foi completamente abaixo. Paragem para a operação de substituição de pilhas no carregador do GPS e para telefonar à família que esperava em Champex. Marcamos encontro para La Fouly. A descida a partir daqui era muito técnica. Era necessário ir mais devagar. Um espanhol diz com grande satisfação que Kilian ganhou novamente.
Chego depressa a La Fouly. Estava com fome, e atiro-me ao pão com chouriço e sopa. Entretanto chega o Guilherme muito ‘queixoso’ da descida. Quando chega o apoio moral da família e amigos, já estou recomposto e alimentado. Foi um momento agradável de ‘carregamento das pilhas’ para a difícil tarefa que restava. Mais umas fotos.
Com todo este tempo de paragem chega o Hugo ao abastecimento. Como me sentia bem física e psicologicamente, e o Guilherme já tinha companhia, comecei a preparar-me para atacar a parte final a recuperar alguma desvantagem. Tinha chegado a La Fouly na posição 693. Com a paragem de 1h04, devo ter caído para próximo da posição 800. Saio a bom ritmo num percurso inicial a descer, passando por várias aldeias, onde grupos de miúdo organizavam ‘abastecimentos’ com chá quente e sumos de fruta. Que bem que me soube aquele chá. E a alegria dos miúdos era enorme quando nós aceitávamos a sua oferta. Esta recepção na Suíça surpreendeu pela positiva.
Continuo a ultrapassar muitos atletas que já só andavam. Já era raro ver alguém a correr. Acabam os 10 km de descida que faço em cerca de 1hora. Iniciam-se os 4,6 km de subida até Champex (desnível de 422m). Continuo a ultrapassar muita gente até entrar na grande tenda do Abastecimento, onde chego já ao anoitecer.
Repete-se o ritual da comida. Aqui há prato quente. Encontro inesperadamente o João Faustino. Fico surpreendido pois pensava que ela já estaria mais para a frente. Estava com problema com o frio. Só tinha camisola sem mangas. Emprestei-lhe uma t-shirt e lá se convenceu a ‘seguir viagem’, mas só a caminhar. Ainda seguimos juntos até sair da povoação.
Antes da saída de Champex, tinha visualizado o percurso até ao fim. Nos 43km finais ‘apenas’ tínhamos de subir por 3 vezes acima dos 2000m. Era só como subir e descer a nossa Serra da Estrela por 3 vezes. Uma boa empreitada para a noite.
Tinha lido descrições da subida de Bovine, que a apontavam como uma das mais complicadas. Mas afinal o desnível positivo desta etapa era só de 700m, concentrados em menos de 3 km, com piso muito técnico (calhau qb). Mas quando pensávamos que o pior já tinha passado, havia sempre algo para nos surpreender. A descida depois de Bovine – mais de 700 m de desnível negativo – nunca mais acabava. Descida igualmente muito técnica, feita quase sempre a ‘correr’. Estava a sentir-me bem.
Chego a Trient – Só faltam duas subidas da Serra da Estrela. Saia mais uma sopa e 3 copos de Coca-Cola. Paragem curta (17min). Tinha de despachar a empreitada.
Subida a Catogne – cerca de 780 m de desnível positivo em cerca de 4km. Subo a bom ritmo. Consigo ultrapassar vários grupos, mas o ponto mais alto nunca mais aparecia. Passei por alguns momentos de fraqueza psicológica do tipo: o que é que me motiva para a estas horas da noite andar aqui a subir e desce montanhas, não tenho vida par isto, etc… mas, … chegamos ao cimo e toca a descer, pois até Vallorcine eram quase 800 m em 4,7km. Comecei a descer rápido, mas para o fim estava a tornar-se doloroso. Aqui tive a única queda em toda a prova, felizmente amortecida pela mochila. Mas cheguei a Vallorcine bastante debilitado.
Mas faltava só uma subida da Serra da Estrela. Na tenda do Abastecimento havia uma informação que dizia: CHAMONIX – 18 KM – DESNIVEL POSITIVO 850M. Era bastante animador!...
Faço a paragem um pouco mais prolongada (43min). Abastecimento suficiente, ingestão de gel energético de longo efeito. Tentei carregar as baterias o melhor possível para a batalha final.
Às 4h23 saída para o ataque final. Eram só 18 km. Os primeiros 3 km eram relativamente planos. Sigo atrás de um francês. Adormeço várias vezes em andamento. Faço um esforço enorme para me manter acordado. Começo a ficar preocupado com a subida que se avizinha. È que lá não podia adormecer. Era demasiado perigoso. Chegado ao inicio da subida o francês pára. Eu sigo sozinho. A subida era muito acentuada e perigosa. Meto um ritmo muito forte para afugentar o sono. Vou ultrapassar vários atletas que tinham partido um bom bocado antes. O piso é muito técnico. Em muitos sítios não havia percurso definido. Era galgar por cima das pedras.
É no inicio desta subida que começam as alucinações: Vejo folhas de arvores no chão com formato de caras de bonecos com uma perfeição incrível. Tento apanhar uma para recordação, mas… não consegui, ela desapareceu. Cheguei à conclusão que a cabeça começava a desregular. Com o esforço da subida as coisas foram ao lugar.
Mas tudo tem um fim, e o tipo de piso mantém-se, mas perde inclinação. Estamos quase a chegar ao cimo. Agora era saltar de pedra em pedra. Começo a ver ao longe alguém a fazer sinais de luzes. Imagino o posto de controlo de La Tete aux Vents. Ando mais um pouco e deparo-me com um atleta deitado em cima de uma rocha numa posição não muito propícia para descansar. Pergunto se é necessário alguma coisa ao que ele me responda que não. Verifico depois que já estava referenciado pela organização, e os sinais de luzes eram para ver se ele reagia. Um pouco depois cruzo com um membro da organização a corre em direcção contraria e pouco depois vejo o Heli dirigir-se para o local. Tudo isto coincide com uma das maravilhas do UTMB - o amanhecer com o Monte Branco mesmo ali em frente. Que vista deslumbrante. Por isto valeu a pena sofrer durante 36 horas para aqui chegar. Que pena, tinha deixado a máquina fotográfica em La fouly.
As Subidas tinham acabado. Agora era só descer até Chamonix. Sentia-me bem e com forças que, se bem geridas, permitiriam seguir num bom ritmo. Faço o penúltimo percurso em 34 min, continuando a ultrapassar. Paragem no abastecimento para últimos copos de coca e água (cerca de 5 min) e vamos que já cheira a meta. Inicialmente descíamos por um estradão não muito inclinado, mas ao virarmos à esquerda na floresta acentuava-se um pouco a descida com curvas e contra-curvas. Consegui manter-me sempre em passo de corrida. Tentei contrariar a vontade de andar e consegui. Chego aos últimos 3-4km onde voltamos a encontrar estradões que permitiam aumentar o ritmo. Já via os telhados da casa de Chamonix mais perto. Começo a vislumbrar ao fundo o alcatrão. Era sinal de que iria entrar no último km.
Cerca de 300m depois de entrar no Alcatrão iria passar junto ao hotel onde por acaso uma das minhas filhas estava na varanda, começando a gritar bem alto. Não estavam preparadas ainda para me receber. Adiantei-me cerca de 10min em relação às previsões da organização. Nestes últimos 700 m rolei muitas vezes a 5 o km. Sentia-me bem, com força, muita emoção e alegria. Eram 8 de manhã, não havia muita gente, mas os apoios eram generosos. Depois foi o cortar a meta, sem Vangelis, mas com muita alegria. E o sentimento quase imediato – volto para o ano.
Imagens fortes que ficam:
• A partida – espectáculo com público extraordinário.
• As luzes dos frontais no alto da montanha a zig-zaguiar, e eu ainda cá em baixo. Aquilo parecia a subida ao Céu. À noite as sensações são ampliadas.
• Os abastecimentos e a simpatia dos voluntários.
• O nascer do dia e as paisagens deslumbrantes que ele nos revela.
• A capacidade de resistência desta máquina que é o corpo humano.
• O espírito de companheirismo que se respira.
• As alucinações – pensava que eram histórias.
• A Chegada….
Posição: 391º - V2 - 43º - Tempo: 37H40
Tempos de paragem: Cornometrados: 4H29
N/ Cronometrados: +-2H45
TOTAL: +-7H14

5 comentários:

  1. Simplesmente genial este documentário. Sem mais palavras.
    PARABENS Jorge.

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  2. Se a primeira parte quase me fazia reservar já bilhetes de avião para a próxima edição, esta segunda parte vivi-a na pele do Guilherme.

    É muito duro! Não poder dormir, ter alucinações, subir e descer sem nexo algum... não estou preparado!

    Tiago Martins

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  3. Sem dúvida, empolgante!!!
    Parabéns pelo desafio e pela coragem!
    A parte do adormecer a andar, ninguém acredita!!! Eu passei pelo mesmo no 5º dia do Rally da Tunísia numa etapa de 670 klms em pleno deserto, com a agravante de ir de Moto!
    E também vi miragens, por isso acho que não tem motivos para se preocupar, o corpo humano é uma máquina!!!
    Grande abraço, desde o TNLO que fiquei fã de Trails, obrigado!

    Miguel Saraiva

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  4. Uma grande prova e um mt bom relato, parabéns. Só não gostei muito da parte do « para o ano estou lá de novo» pois penso que existe para aí uma Duquesa que assim sendo irá querer repetir também...

    Bolas

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  5. excelente relato! Obrigado por partilhar isto connosco. Um dia tambem lá irei...

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