· Sempre gostei de novos desafios e
quando a oportunidades surge, se puder, estou lá.
· Adoro andar sozinho pelo
desconhecido, principalmente durante a noite e grandes distâncias (GD) têm
sempre desse menu.
· Não me move o interesse por superação
pessoal, e os novos desafios não são encarados desse prisma, mas como algo que
me vai dar imenso prazer.
· Se aparecer alguma limitação física
que se sobreponha ao prazer que retiro das GD, não me custa parar.
· Ao contrário de menores distâncias, nas
GD raramente me passa pela cabeça desistir só por sentir cansaço.
· Sempre encaro as GD como a certeza
que é para chegar ao fim, se não aparecer qualquer contratempo de ordem física.
O cansaço não entra nestas contas, porque se estou cansado tenho solução –
descanso.
· As GD são uma ótima forma de ir
conhecendo autênticos tesouros naturais. Ao contrário das distâncias mais
curtos, aqui temos tempo para nos envolvermos interagir muito mais com o meio
natural.
· Vou sentindo o meu corpo, e procuro
ir percebendo quais são os limites, para nunca lá chegar. A saúde e bem-estar
físico e psicológico é a grande motivação deste desporto.
· A competição é o sal condimenta todas
as outras motivações, visto que não nego que gosto de chegar bem e chegar
primeiro.
· O caminho faz-se caminhando – a
paciência é o exercício que tem de ser mais assumido e trabalhado, nas GD.
Transpyrenea – para
mais tarde recordar
Uns meses depois do início desta grande aventura, finalmente
tenho disponibilidade para começar a reviver emoções e passa-las para o
‘papel’.
Tudo começou com muita antecedência com o planeamento da
preparação e organização da logística e material necessário.
Quanto à preparação, como se torna difícil fazer treinos
longos indispensáveis para preparar o físico, optei por um calendário de provas
longas a partir do início do ano e que serviria também para testar material,
alimentação e outras situações em cenário real.
0 calendário de participações em provas desde o início
do ano foi planeado com vista à preparação para a grande aventura.
A alimentação era o grande problema que me assustava. Sabia
que se conseguisse resolvê-lo tinha hipótese de concluir esta aventura. Testei várias soluções/situações sem muito sucesso,
tendo abandonado no MIUT devido a este problema. Por mero acaso, no UTSM fui
apanhado pelo José Simões, que no Marvão, enquanto bebíamos uma cerveja e
conversávamos sobre este problema, me revelou que estava a testar, com sucesso,
a toma de omeprazol, e que a coisa estava a correr bem. Oito dias depois na
Estrela Grande fiz o teste e correu bem, e a partir daí em ultras com mais de
60 km confirmei os seus efeitos positivos.
Voltei a ter o problema hemorroidal no Oh Meu Deus, que me
recordou que tinha de fazer prevenção e ter atenção também a esta situação.
A hora estava a chegar. Algumas mudanças de planos no que
respeita a acompanhamento e deslocação. Acerto voos para Barcelona com João
Colaço e no dia 17 vamos ao encontro da Célia e João Oliveira que já tinham
seguido em voos anteriores. Destino para dormir, Girona, a cerca de 60 km da
partida. Foi uma viagem calma, sem stresse como convém, com passeio e jantar à
noite pela zona histórica de Girona. No dia seguinte, deslocação ao super para
últimas compras de alimentação e apanhar táxi para Perthus (viagem de pouco mais
de 40 minutos) e lá está imponente, no alto da colina, o forte de Bellegarde.
Seguimos no táxi até bem perto e nos últimos 100 metros tivemos de carregar os
sacos, o da Célia bem pesado.
O nosso hotel |
Termina com a sessão de informações, um desfile com as bandeiras dos diversos países e jantar que entrou pela noite dentro. E,.. vamos para a ‘cama’ que nas 2 semanas que se seguem não vai haver noite inteira para dormir.
É chegado o dia D.
Descemos para a saída do forte com o João Oliveira como
porta-bandeira e que rapidamente se distancia de nós. Só depois é que vi que
logo que passavam a porta era para correr.
Os tugas |
Estava lançada a grande aventura.
Agora era cada um por si.
Sector I
- · Com 164.6 km
- · 5 pontos de controle (CP)
- · Trilhos com partes técnicas e com poucos cursos de água no início.
- · Desnível: 13000 m D+ 13000 D-
- · Temperaturas máximas de cerca de 35ºC
- · Noite quentes
- · Sem chuva
Partida em ritmo confortável, a descer do forte por estradão e
entrar rapidamente em trilho pelo meio da floresta. A temperatura muito alto
rondava os 33ºC, o que aconselhava à calma, porque tínhamos muitos km pela frente.
Esta primeira parte, embora com alguma floresta que nos dava uma sombra
preciosa, era muito seca, não aparecendo qualquer ribeiro ou ponto de água.
Apenas cerca dos 11 km podíamos desviar cerca de 100 metros do trilho para nos
refrescarmos e abastecer de água numa fonte. Cerca de 200 m depois havia um
abastecimento de água e controlo da organização.
Como parti de trás, não tinha noção de quantos seguiriam à
minha frente, nem isso era importante. Não sabia que tinha passado o João
Colaço, por isso ia na expectativa de o ver, visto que estava a ultrapassar
pessoal nas subidas. Sou ultrapassado pelo Daniel Dias (português a residir em
França) no início da descida para o CP1. Desde o início que me autocontrolo nas
descidas, porque é a descer que nos maçamos mais, por isso geralmente
ultrapassava nas subidas e era ultrapassado nas descidas.
À chegada ao CP1 cruzo com o Daniel Dias já de saída. Neste
CP1 procuro comer o que estava disponível e as sardinhas de conserva foram uma das
opções. Também comi aqui, pela primeira vez, uma sopa de urtigas que, em termos
de paladar não me agradou muito, mas deve ser boa pelo ferro. Não demoro mais
de 20/25 minutos. Entretanto chega e sai antes de mim o Daniel de Melo (outro
português a residir em França).
Foto de Bruno Lopes |
O plano era ir dormir ao CP seguinte, por isso não podia
perder muito tempo porque tinha 12 km sempre a subir (quase 1300 de D+). Como
estava a anoitecer, aproveitei a ‘boleia’ e saí com o Daniel Melo. Ele tinha
chegado um pouco antes de mim ao CP2 e recebia, nesta primeira parte, o apoio
da esposa. Foi ela que nos informou que o João Colaço também já tinha passado
no CP1 e só faltava informação da Célia. Seguimos a bom ritmo, fazendo algumas
ultrapassagens nas subidas de maior dificuldade. Temos ritmos muito semelhantes
nas subidas. Depois de seguirmos por um trilho ao lado de uma pequena ribeira
(nesta zona ainda não eram tão frequentes como a seguir à BV1), entrarmos numa
estrada de alcatrão que reconheço das fotos do google e que sabia estar muito
perto do CP3. Chegamos pouco depois pelas 23:31 a Batere. Foram-nos distribuidos no inicio vários "pass dormida" e "vales refeição" que podiamos utilizar em alguns refúgios. Peço para utilizar um
PASS dormida, e por sorte só havia uma cama disponivel. Era uma camarata com
beliches. Claro que o beliche disponivel se situava por cima o que tornou a operação de
instalação muito mais dificil para se fazer às escuras e sem barulho. Lá me
‘estico’ na cama, ponho o despertador para as 4 horas e procuro dormir. Demorei
a adormecer, mas cerca de meia hora antes da hora prevista, acordo e
levanto-me, vou ao abastecimento comer e arranco sozinho pela serra acima.
Objectivo CP4 – PY.
Dia 2
O amanhecer na montanha |
Fazia muito calor e decido fazer uma sesta por aqui, à espera
de tempo mais fresco. Para isso, aconselharam-me a voltar a um relvado por onde
tínhamos passado cerca de 300 m antes de chegarmos ao CP. Sesta de cerca de 1
h30 e volto ao CP para arranjar agua quente para uma refeição dos liofilizados.
Para acompanhar foi comprar uma cerveja numa loja ali perto.
Depois da primeira refeição de liofilizados, é hora de me por
a caminho pois queria ir dormir ao CP5. Sempre a subir até ao col Mantet e
depois de uma pequena descida voltamos a subir até aos 2300 m (col del pla).
Quase no fim da descida seguinte, um pequeno descanso para comer uma barrita e
siga, até chegar à travessia de um rio onde estavam várias tendas. Do outro
lado estava o refúgio Carança. Está a anoitecer e paro aqui no refúgio para
jantar e tentar de seguida atingir o cp5. Compro uma cerveja e água quente para
preparar o jantar.
Tomei café à mesa, com atletas que estão a jantar no refugio
e que vão dormir por aqui. Nenhum dos presentes vai partir, por isso tenho de sair
sozinho às 22H pela serra acima. Algumas hesitações para apanhar o trilho
certo, mas como é uma subida dificil como eu gosto, consegui progredir bem e
alcançar outro atleta. Agora era sempre a descer até Planes pensava eu.
Vou tão distraído a ver as luzes na terra lá ao fundo, por um
estradão abaixo e, pensando que agora era sempre assim até ao CP, quando me
lembro das marcações já era tarde. Verifico o trilho no GPS e qual é o meu
espanto, não aparecia o risco do track no ecrã. Faço zoom e verifico que o
trilho passava ao lado, mas do outro lado do vale. Tinha de subir o estradão
que acabei de descer. Foram cerca de 1000 m a subir até chegar a uma curva
apertada, onde se saía do estradão. Como é que eu não vi aquela cruz bem visível
a “cortar” o estradão e a indicação do GR10 para a frente. Estava consumado o
primeiro passeio por fora do trilho. Também nesta altura apanhamos os primeiros
pingos de água para testar o poncho. Fiquei fã. Para este tipo de aventuras é muito
prático. Põe-se rapidamente e cobre tudo.
Depois de seguir por um estradão à esquerda de um vale acabo
por apanhar um companheiro, chegamos a uma cabana onde
tivemos alguma dificuldade em encontrar o trilho. Esta cabana tinha uns bastões
encostados ao lado da porta. Era o refuge de l’Orri. Só uns dias depois percebi
que estas cabanas podiam ser utilizadas em caso de necessidade. Se soubesse
isso teria entrado para descansar.
Olhando para o road
book, tínhamos de atravessar para o outro lado do rio onde o percurso descia em
sentido contrário. Testamos várias saídas até descobrimos o caminho certo. Afinal
ainda tínhamos de subir mais um pouco e só depois encontravamos a passagem para o
outro lado. Aqui não havia trilho definido, íamos descendo por uns espaços com
relva e arbustos. Começamos a afastar-nos do rio e a subir um percurso muito
técnico pela montanha acima. Seguimos os dois durante algum tempo, mas a noite
estava quente e começo a ver se encontrava local ao jeito para dormir. Estava
difícil, visto que o trilho era muito inclinado e com arbustos e mato rasteiro e
sem clareiras para estender o colchão. Finalmente, a chegar ao cimo encontro um
local que, embora com inclinação excessiva, aproveitei porque era o melhor que
tinha visto até ali. Eram quase 3 h da manhã. Consigo dormir, não sei bem se
muito ou não, mas acordei devido à inclinação do terreno e a uma brisa fria que
entretanto se levantou. Arrumo o saco cama e o colchão, volto ao trilho, ando
menos de cem metros e encontro um relvado excepcional para dormir. Ainda me
passou pela cabeça dormir mais um pouco, mas comecei a ver luzes lá ao fundo e
isso deu-me o alento para não parar. Finalmente estava a descer para Planes.
Atravessamos toda a vila e quase na saída andei por ali hesitante no caminho a
seguir. Depois de alguns minutos consegui com a ajuda do GPS seguir pela
estrada correta até à saída da povoação. Pensava que o CP5 estava por perto,
mas não via nada. Seguiamos por um caminho por meio de campos agrícolas, com a
erva cortada o que o tornava macio e muito agradável para os pés. Vemos luzes
ao fundo. Deve ser o CP, penso eu. Quando vejo elementos da organização na
travessia de uma estrada nacional e um deles me acompanha durante uns 400
metros até virar à direita para um caminho, volto a pensar no CP. É que o dia
estava quase aí. Afasto-me novamente para meio dos campos e volto a ver luzes
ao longe, mas quando estava quase a chegar viro em sentido contrário. Estava a
ficar cansado deste jogo de falsas expectativas para chegar ao CP5, até que
finalmente, já ao amanhecer, entro no campo de futebol de Bolquere, pouco
depois das 6 Horas da manhã e lá estava o tão desejado CP5. Vou dormir cerca de
2 horas numa das tendas montadas par o efeito.
Dia 3
Depois do pequeno-almoço de liofilizados e de ver o Daniel partir,
saio com mais dois atletas. Vamos atravessar a pequena aldeia e virar para um
trilho a subir. Depressa eles ficam para trás e passo a andar sozinho. O
percurso é fácil, mas sempre a subir ligeiramente. Já na descida começo a ver
um grande lago e uma zona turística, com carros e autocarros. Ao chegar vou
descansar um pouco na esplanada e tomar um café e um bolo. É o lago de
Bouillouses., Ao ver que eu era português (a bandeira identificava-me), um
casal que estava na mesa ao lado e que tinha acabado de chegar de
Merens-les-Vals, conta-me a história do João Oliveira sair do trilho e andar
perdido algures por Andorra.
Lago de Bouillouses |
A descida era muito tecnica e fiquei surpreendido quando, a
subir as pedras em autêntica escalada, cruzo com uma jovem solitária com uma
grande mochila. Esta parte do percurso não ficava a dever nada a nossa bem conhecida
besta. Continuo a descer o vale até voltar a subir para o Refugio de Besines.
Antes de chegar ao refúgio encontro o desvio para o GR107 por onde seguiu o
João Oliveira, e onde também hesitei.
Chego ao refúgio onde já estava o Daniel de Melo e mais
alguns atletas, numa esplanada com vista magnifica para o vale. Peço uma
cerveja e água quente para preparar a refeição. Eles acabam por saír todos e
fico sozinho a almoçar. A BV estava a menos de 10 km. Era subir cerca 1km e 200
m+ e de seguida sempre a descer.
Inicio a subida, cheio de força e opto por seguir junto a uma
linha de água em vez de seguir o trilho. Pouco depois tenho de fazer autêntica
escalada para atingir o col. Deparo-me com um ‘trilho’ que era um amontoado de
pedras. Uma descida tão complicada que acabou por demorar mais tempo que o
previsto. ‘Calma Jorge, que as descidas é que matam’, pensava eu sempre que me
aparecia um descida deste tipo.
A partir do meio da descida, o trilho melhora o que permite
recuperar algum tempo perdido na primeira parte. A certa altura começo a ver
aglomerado enorme de pessoas em fato de banho e biquini. Ao aproximar-me
verifico tratar-se de um pequeno lago com uma nascente de água termais
(quentes) e ali estavam a cobrir completamente toda a superficie do lago. Cá
fora muitos esperavam por um pequeno espaço para se meterem na água.
Quase a chegar à BV |
E assim cheguei à BV1 de Merens-les-Vals dentro do tempo que
tinha previsto. Em princípio deveria estar por aqui o meu sobrinho André e a
Natalina que ia de regresso à Alemanha. Não os vejo e como não tínhamos
contactado depois da minha saída de Portugal, pensei que tinham mudado de
planos. Vou para uma tenda ampla onde me deito para descansar, recebo o saco e
preparo as coisas para um duche. Entretanto alguém chama por mim. É a
Natalina que acaba de chegar dos mesmos trilho que eu tinha descido. O André
tinha acabado de voltar a subir porque deu por falta da carteira e foi à sua
procura. Conversamos enquanto preparava comida e jantava. Vou ao duche que nesta
altura é óptimo para a recuperação. Depois de tudo preparado com tenda para
dormir, ainda fui à autocaravana deles beber um café, enquanto esperávamos pelo
André que tinha encontrado a carteira e vinha a descer. Quando ele chegou e
cerca de 3 horas depois de eu chegar à BV, vou dormir até às 3 da manhã.
Continua: http://jserrazina.blogspot.pt/2017/04/transpyrenea-2016-parte-ii1.html
Continua: http://jserrazina.blogspot.pt/2017/04/transpyrenea-2016-parte-ii1.html
Parabéns Jorge esta um espectáculo, tanto na descrição como no desenrolar...grande aventura, parabéns...abraço
ResponderEliminar